Articulista faz revisão em léxico (07/07/2005)


Júnior De Carli

Dia desses recebi e-mail de um amigo ponderando sobre expressões verbais que o incomodavam. Interessante, ele em Brasília, eu em Manaus, e pude sentir sua indignação pessoal, especialmente contra o “com certeza”. Ainda que, com certeza, ele tivesse mais com o que se preocupar, se preocupou com o tema. Analisando a questão, vejo que o problema não é tão inoportuno assim... com certeza!

Digo interessante porque abordei em meu livro, Mudanças e Contextos – de Jesus Cristo a Bill Gates, essa flexibilidade de comunicação nesta Era da Informação, onde todos podem, com certeza, falar com todos. Essa tal “rede mundial” de fato consegue prover infinito volume de informações. Obviamente a maioria delas inúteis, mas muitas, com certeza, não.

Pensando bem, também não suporto mais ouvir as pessoas usarem o “com certeza”. Alguns insistem em enquadrar o termo no grupo das gírias. Mas estão errados, com certeza.
Esse mau hábito vernacular talvez devesse ser enquadrado como defeito de linguagem, ou, simplesmente, como ignorância mesmo. Só que há outro contexto: pode também ser usado quando a pessoa não entende o que a outra fala, ou não está interessado no assunto... com certeza essa é uma perspectiva inusitada.

Tal expressão, a propósito, não é nova. Recebemos de Portugal, nos idos de não sei quando, creio que na carona da música “Uma casa portuguesa... É uma casa portuguesa, com certeza... É, com certeza, uma casa portuguesa”.

O assunto é grave: saiu na revista Época

Você deve se lembrar da terrível epidemia de cólera que, há mais ou menos uns cinco anos, deveria arrasar o Brasil. A imprensa não falava em outra coisa: o cólera estava devastando o Peru, e sua chegada ao patropi era iminente. O ministro peruano da Saúde tinha ido parar no hospital devido a um peixe cru comido ao vivo na televisão - e o telespectador brasileiro ficava imaginando quais ministros brasucas mereciam sorte semelhante.

As donas-de-casa correram às farmácias em busca de um novo gênero de primeira necessidade, o esterilizador de saladas. Os restaurantes japoneses ficaram às moscas (durante a epidemia de boatos sobre o salmão) e quase foram à falência coletivamente.

Pois bem. Com toda a atenção voltada para o cólera, acabamos não reparando numa outra doença que insidiosamente foi se alastrando por toda a população. Naquela época ainda eram poucos os que sofriam desse mal -talvez muitos fossem apenas portadores assintomáticos. Hoje, não. Hoje pode-se dizer que se trata de um dos maiores problemas de saúde pública do país.

Estou falando da epidemia do “com certeza”.
Confesse: você também está contaminado. A todo momento, sem nenhuma razão especial, você solta um “com certeza” como resposta afirmativa para qualquer coisa. É incontrolável.

Você tomou café da manhã hoje? Com certeza. Lula vai discursar de improviso? Com certeza. Os juros vão continuar subindo? Com certeza.

Diferentemente de outras doenças de linguagem, o vírus do “com certeza” não foi espalhado por nenhuma novela ou campanha de publicidade. Nunca foi bordão de programa humorístico, nem frase célebre de algum político imexível. A única pessoa pública a usar o “com certeza” como marca registrada é a apresentadora Leda Nagle - mas um talk show diurno na TVE é pouco para que ela seja apontada como a única culpada. O “com certeza” simplesmente pegou.

Até antes da epidemia do “com certeza”, os brasileiros tinham o maior repertório de respostas afirmativas do planeta: É... Foi... Vamos... Posso... Recebeu... Anrã...
O leque de possibilidades era tão grande que raramente a gente lançava mão da resposta afirmativa dos sem-imaginação, o “sim”. Para que falar “sim” se a gente podia responder “gostei”, “fui” ou “quero”? Mas agora isso é passado. Porque só sabemos responder “com certeza”.

Se isso pelo menos fosse um sinal de que temos alguma certeza de qualquer coisa, tudo bem. Mas continuamos sem certeza de nada. Oitenta por cento dos “com certeza” que saem de nossa boca são puro chute.

Vai chover amanhã? Com certeza. O trânsito está livre? Com certeza. Dá para chegar até a próxima cidade com essa gasolina? Com certeza.

Ainda não se sabe como o “com certeza” atua no cérebro - desconfia-se que se instale no sistema nervoso parassimpático, controlando todos os músculos involuntários -, mas existe o temor de que, dentro de poucos anos, o “com certeza” se transforme na única resposta que sejamos capazes de dar para qualquer pergunta.
- Você prefere os ovos fritos ou mexidos?
- Com certeza.
- Para onde você vai depois de amanhã?
- Com certeza.
- Qual é o seu nome?
- Com certeza.
Antes de isso acontecer, com certeza, já teremos perdido para sempre a palavra “não” - substituída, é claro, pela locução “sem certeza”.

Com certeza

Pensado bem, essa coisa de ter dúvida é mais que démodé. Com certeza, o termo está nos deixando assim meio... com certeza, entende?
Maluco, eu? Com certeza, não. Mas, uma coisa, com certeza, posso dizer: Ricardo Freire, articulista da revista Época, foi muito inspirado no artigo que tratava o tema “Com certeza, uma epidemia”... Atchim – saúde, com certeza.

Esta coluna é publicada às quintas-feiras e é elaborada sob a coordenação do administrador de empresas com MBA pela FGV, Júnior De’ Carli. Site: www.juniordecarli.com.br E-mail: junior@juniordecarli.com.br


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