Quem não tem cão, caça com gato (02/04/2005)


Júnior De Carli

Impessoalidade. Esse é o tema da semana. A palavra diz pouco à maioria da população. Primeiro porque é de raríssimo uso cotidiano. Depois, porque no fundo ninguém quer essa tal “impessoalidade”. Quem não gosta de ser atendido de modo diferenciado no banco, de ser reconhecido e tratado com deferências especiais. Somos quase todos assim - vaidosos, egoístas, interesseiros.

Impessoalidade mais parece com algum conceito utópico, impraticável; um princípio inexistente na natureza humana. Ainda assim, governantes têm que morder toalha para não cair na tentação de auto promovem-se. Dói, eu sei... mas tem que ser assim. Caso contrário, é crime.

Comentários de Alberto Bezerra, advogado, professor de direito constitucional dão conta que “todos os agentes públicos devem praticar atos visando o interesse público – e nunca o particular”.
Interessante, interessante... pensemos... Pronto, pensei!

Bem. Parece mais apropriado discutirmos, antes, o “princípio da verdade”. Pior que se locupletar com dinheiro público para divulgar nome de governante é faltar com a verdade nas veiculações. Isso, antes de ser ilegal, é imoral.
Êpa - diz alguém - cadê as provas?

Tá certo, tá certo. Vamos instaurar, então, um julgamento. Que a acusação faça entrar suas primeiras testemunhas: educação, saúde e segurança. Agora, que entrem coerência, transparência e honestidade. Por fim, para o juramento, Cordeirinho, Bosco Saraiva, Moura 1 e Moura 2.

Agora, as testemunhas de defesa. O advogado (não o juiz) conclama aos pressentes: “todos de pé”. São testemunhas sobre-humanas, impolutas, acima de qualquer um de nós, reles mortais; são santos. - Que entrem São Silvestre, Santa Etelvina e São Judas Tadeu.
São Silvestre fala de porto. Justifica que nada fez de concreto porque não é da área. Apesar de tudo, fez o que pôde. Elaborou belo material informando o que seria a SNPH, orçamentos, estatísticas. Foi também ao ministro dizer que os portos do interior já estavam devidamente abandonados, mas que seria necessária uma intervenção federal para o de Manaus voltar a ser como era antes. Todos aplaudem.

Santa Etelvina fala de habitação. Seus préstimos ao governo teriam sido excelentes não fosse a injustiça lançada sobre o valor de desapropriação do terreno. - Hereges! Não respeitam nem aos santos -. E todos novamente aplaudem.

“Silêncio no tribunal. Toc, toc, toc... ordem na Corte”, irrita-se o juiz.
Vem agora São Judas Tadeu contra-argumentar sobre as áreas de educação, saúde e segurança. Para o interior, de Zona Franca Verde; para a capital, de eleições e igarapés. O santo das causas impossíveis foi ovacionado. E mais. Comentários dão conta que veio dele a sugestão das campanhas publicitárias... afinal, quem não tem cão, caça com gato.

Questão de semântica

Enquanto os jurados estão recolhidos, para avaliar a culpa ou inocência do governante responsável pelas milionárias campanhas publicitárias, começam todos a conjeturar sobre a utilidade dos princípios constitucionais da impessoalidade, publicidade e moralidade. Uns dizem isso, outros dizem aquilo. Ninguém se entende.

Voltam os comentários do constitucionalista Alberto Bezerra. Impessoalidade é “uma norma importantíssima, principalmente em um país como o Brasil, onde casos de corrupção costumam aparecer com freqüência no noticiário. Combinando com outros princípios – como o da publicidade e o da moralidade – não há exceção, na administração pública, para atos particulares”.

De pronto argumenta o advogado de defesa:
- Ora, senhores, estamos aqui tratando exatamente do princípio da publicidade! A propósito, e por falar também em moralidade, este julgamento é uma “imoralidade”-, conclui.

Chocada, protesta a acusação: - Data vênia máxima, caro colega, a publicidade dita na Constituição diz respeito à publicação dos atos praticados pelo governo.
De pronto, a defesa faz sua tréplica: - Então!
No calor da discussão, o governante arrisca argumentar com uma passagem bíblica: “que atire a primeira pedra quem nunca errou!”.
- Abaixa, lá vem uma -, grita um atento deputado comunista.
- Quem tacou? -, pergunta a vítima.
- Foi o Ministério Público - diz o deputado. - As coisas estão acontecendo e o MPE não faz nada. E só erra quem faz.

O governador, irritado, chama aos berros a Procuradoria do Estado, e questiona: - Eu errei ou não?
E o procurador responde: - Claro que não.
- Então informe isso ao juiz e aos jurados. Eu sou um homem de princípios, “meios” e “fins” -, se auto-sentencia o réu.
Enquanto os jurados retornavam a seus lugares, ouve-se alguém falando ao telefone: - Certifique-se que os “meios” foram providenciados para não prejudicar os “fins”. A palavra chave é “semântica”. A semântica, senhores, parece ser a principal oponente das leis.

O veredicto shakesperiano

“- Todos de pé”, profere o juiz, logo perguntando: - O júri chegou a um veredicto?
- Sim, excelência.
- E qual é?
- Semântica. Culpa existe, mas é da semântica. Quanto à pena, só em 2006.
- Arquive-se temporariamente o processo -, sentencia o juiz.
E o julgamento termina com um belo vídeo institucional do Amazonas mostrando gente sorrindo, muita gente sorrindo. Homens, mulheres, crianças. A música fala de amor e trabalho. De concreto não mostra nada, exceto o governador, mais governador e, por fim, o governador (seria isso a tal falta de impessoalidade?).
Alguém, injustamente, é claro, resume a postura do réu com uma frase de William Shakespeare: “Este sujeito é sábio o bastante para se fazer de bobo (...)”. E pergunto eu: - A nós também?.

Esta coluna é publicada às quintas-feiras, e é elaborada sob a coordenação do administrador de empresas com MBA pela FGV, Júnior De’ Carli. Está sendo publicada hoje por causa do feriado E-mail: junior@portodemanaus.com.br


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